A iminente extradição de Julian Assange e a morte do jornalismo, por Chris Hedges [*]
Traduzido de inglês para espanhol por Muñoz de Bustillo.
Traduzido de espanhol para português por Rosa Pinho.
Para Julian Assange as opções legais estão praticamente esgotadas e poderá ser extraditado a qualquer momento para os Estados Unidos. Se for condenado naquele país qualquer artigo sobre o funcionamento interno de poder poderá converter-se em delito.
O juiz do Tribunal Superior britânico Jonathan Swift – que anteriormente trabalhou para diversas agências governamentais britânicas como advogado e afirmou que os seus clientes favoritos são «as agências de segurança e inteligência» – rejeitou na semana passada as solicitações dos advogados de Julian Assange para recorrer da sua extradição. A ordem de extradição foi aprovada em junho do ano passado pela ministra do Interior, Priti Patel. A equipa jurídica de Julian apresentou um último apelo, a última opção disponível nos tribunais britânicos. No caso de ser aceite, o caso poderia passar por uma revisão oficial perante os novos juízes do Tribunal Superior. Se for rejeitado o último apelo, Julian poderá ser extraditado imediatamente para os Estados Unidos, donde poderá ser julgado por 18 acusações de violação da Lei de Espionagem, acusações pelas quais brevemente poderia ser sentenciado a 175 anos de prisão. (1)
A única possibilidade de bloquear uma extradição, se for recusado o recurso final como suponho que sucederá, estaria no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). O braço parlamentar do Conselho da Europa, que criou o TEDH, juntamente com o seu Comissário de Direitos Humanos, opõem-se à «detenção, extradição e ao processo» de Julian porque representa um «precedente perigoso para os jornalistas». Não é claro se o governo britânico acataria a decisão do tribunal – ainda que esteja obrigado a fazê-lo – no caso de o TEDH se pronunciar contra a extradição, ou se o Reino Unido extraditaria a Julian antes que se possa apresentar um recurso ante o tribunal europeu. Uma vez enviado para os Estados Unidos, Assange seria julgado no Tribunal do Distrito Este de Virgínia, onde o governo norte-americano tem ganho a maioria dos casos de espionagem.
A juíza Vanessa Baraitser do Tribunal de Magistrados de Westminster, na Inglaterra, negou-se a autorizar a solicitação de extradição do governo americano em janeiro de 2021 devido à gravidade das condições que Julian suportaria no sistema penitenciário norte-americano:
«Ante as condições de isolamento quase total, sem os fatores de proteção que limitavam o seu risco [na prisão de Sua Majestade] em Belmarsh, estou convencida de que os procedimentos adotados pelos EUA não impediriam que o Sr. Assange encontrasse a forma de suicidar-se», disse Baraitser ao pronunciar a sua sentença de 132 páginas, «e por esta razão decidi que a extradição seria degradante em razão do dano mental e ordeno a sua libertação».
A decisão de Baraitser foi anulada depois de um recurso das autoridades norte-americanas. O Alto Tribunal aceitou as conclusões do tribunal inferior sobre o maior risco de suicídio e as condições inumanas da prisão americana. Mas aceitou quatro garantias da Nota Diplomática dos EUA nº. 74, entregue ao tribunal em fevereiro de 2021, em que se prometia que Julian seria bem tratado. O governo norte-americano afirmou que as suas garantias «respondem totalmente às preocupações que levaram a juíza [do tribunal inferior] a pôr em liberdade o Sr. Assange». As «garantias» afirmam que Assange não será submetido a Medidas Administrativas Especiais (SAM, a sigla em inglês). Prometem que sendo cidadão australiano poderá cumprir a sua pena na Austrália se o governo daquele país solicitar a sua extradição. Prometem que receberá atenção clínica e psicológica adequada. Prometem que, antes e despois do julgamento, Julian não será encarcerado no Centro de Internamento de Segurança Máxima (ADX, a sigla em inglês) de Florence, Colorado. Ninguém é encarcerado em ADX Florence antes do julgamento. Mas soa inquietante. ADX Florence não é a única prisão de máxima segurança dos EUA. Assange poderá ser encarcerado em qualquer das outras instalações similares a Guantánamo numa Unidade de Gestão de Comunicações (CMU, a sigla em inglês). As CMU são unidades altamente restritivas que reproduzem o isolamento quase total imposto pelas SAM.
Nenhuma destas «garantias» vale sequer o papel em que estão escritas. Todas vêm com cláusulas de exceção. Nenhuma é juridicamente vinculante. Se depois de oferecer estas garantias Julian fizesse «algo que cumpra os requisitos para a imposição de SAM ou a designação de ADX», estará sujeito a estas formas mais duras de controlo, admitiu o tribunal.
Se Austrália não solicitar a extradição «isso não poderia ser motivo de crítica aos EUA, nem razão para considerar que as garantias são inadequadas para satisfazer as preocupações da juíza», disse a sentença. E inclusive se não fosse assim, Julian demoraria entre 10 e 15 anos no recurso da sua sentença até ao Tribunal Supremo de Estados Unidos, o tempo mais que suficiente para destruí-lo psicológica y fisicamente.
Sem dúvida, o avião que espera para levar a Assange para os Estados Unidos estará bem provido de vendas para os olhos, sedantes, algemas, etc. utilizados para facilitar as «entregas extraordinárias» levadas a cabo pela CIA.
A extradição de Julian será o passo seguinte na execução em câmara lenta do editor e fundador de WikiLeaks e um dos jornalistas mais importantes da nossa geração. Garantirá que Julian passe o resto da sua vida numa prisão norte-americana. Criará precedentes legais que criminalizarão qualquer investigação sobre o funcionamento interno do poder, inclusive por parte de cidadãos de outro país. Será um duro golpe para a nossa anémica democracia, que se está metamorfoseando rapidamente num totalitarismo corporativo.
Estou tão assombrado por este ataque frontal ao jornalismo como pela falta de indignação pública, especialmente por parte dos meios de comunicação. O muito tardio apelo de The New York Times, The Guardian, Le Monde, Der Spiegel e El País – todos publicaram material proporcionado por WikiLeaks – para que sejam retiradas as acusações para a extradição é insuficiente e chega demasiado tarde. Todos os protestos públicos a que assisti em defesa de Assange nos Estados Unidos contaram com escassa assistência. A nossa passividade faz-nos cúmplices da nossa própria escravidão.
O caso de Julian tem sido, desde o princípio, una completa farsa judicial.
O ex-presidente equatoriano Lenin Moreno pôs fim ao direito de asilo de Julian como refugiado político, em flagrante violação do direito internacional. Em continuação, autorizou a Polícia Metropolitana de Londres a entrar na embaixada equatoriana – território soberano reconhecido diplomaticamente – para deter um cidadão naturalizado do Equador. O Governo de Moreno, que revogou a cidadania de Julian, recebeu um importante empréstimo do Fundo Monetário Internacional pela sua ajuda. Donald Trump, ao exigir a extradição de Julian em virtude da Lei de Espionagem, criminalizou o jornalismo de um modo similar a Woodrow Wilson quando fechou publicações socialistas como The Masses.
As audiências, a algumas das quais assisti em Londres e a outras pela Internet, evitaram os protocolos jurídicos básicos. Incluíram a decisão de ignorar a vigilância da CIA e a gravação das reuniões entre Julian e os seus advogados durante a sua estadia como refugiado político na embaixada, eliminando a confidencialidade advogado-cliente. Só por isto, o caso deveria ter sido recusado. Validaram a decisão de acusar Assange embora não seja cidadão norte-americano face à Lei de Espionagem. Incluíram contorções kafkianas para convencer os tribunais de que Julian não é jornalista. Ignoraram o artigo 4 do tratado de extradição entre o Reino Unido e os EUA, que proíbe a extradição por motivos políticos. Vi como o fiscal James Lewis, que representava os EUA, dava diretrizes legais à juíza Baraitser, que rapidamente as adotou como sua decisão legal.
O linchamento judicial de Assange tem muito mais em comum com os obscuros dias da Lubyanka [quartel-general da antiga KGB] do que com os ideais da jurisprudência britânica.
O debate sobre os retorcidos matizes legais distrai-nos do facto de que Julian não cometeu nenhum delito na Grã-Bretanha, à parte uma velha acusação de transgredir as condições da fiança quando pediu asilo na Embaixada do Equador. Normalmente isto comportaria una multa. Em vez disso, foi condenado a um ano na prisão de Belmarsh, donde está preso desde abril de 2019.
A decisão de solicitar a extradição de Julian, contemplada pela administração de Barack Obama, foi impulsionada pela administração Trump depois da publicação por parte de WikiLeaks dos documentos conhecidos como Vault 7, que expunham os programas de ciberguerra da CIA planeados para vigiar e tomar o controlo de automóveis, televisores inteligentes, navegadores web e os sistemas operativos da maioria dos telefones inteligentes, assim como de Microsoft Windows, MacOS e Linux.
Assange, como assinalei num artigo enviado de Londres no ano passado, está no centro da mira da pontaria pelas informações da guerra no Iraque publicadas em outubro de 2010, que documentam numerosos crimes de guerra dos Estados Unidos, incluindo as imagens que aparecem no vídeo Collateral Murder (Assassinato colateral), do assassinato a tiro de dois jornalistas da Reuters e outros dez civis, e de dois meninos gravemente feridos.
Fonte: Scheerpost / Ilustración “Detengan esto”, Mr. Fish
Atacam-no porque tornou pública a morte de quase 700 civis que se haviam aproximado demasiado das escoltas e postos de controlo norte-americanos, entre os quais mulheres grávidas, cegos e surdos, e pelo menos 30 crianças.
Atacam-no porque pôs à luz do dia mais de 15.000 mortos de civis iraquianos de que não se havia informado e a tortura e os maus tratos infligidos a uns 800 homens e meninos, de idades compreendidas entre os 14 e los 89 anos, no campo de detenção de Guantánamo.
Atacam-no porque nos demonstrou que Hillary Clinton ordenou em 2009 a diplomatas norte-americanos espiar o Secretario-General de la ONU, Ban Ki-moon, e a outros representantes da ONU, da China, França, Rússia e Reino Unido, espionagem que incluiu obtenção de ADN, scâner de íris, impressões digitais y contrassenhas pessoais, tudo o que fazia parte do complexo esquema de vigilância ilegal que incluiu escutas ao Secretario-General de la ONU, Kofi Annan, nas semanas que antecederam a invasão do Iraque liderada pelos Estados Unidos em 2003.
Atacam-no porque revelou que Obama, Hillary Clinton e a CIA respaldaram o golpe militar de junho de 2009 nas Honduras que derrubou o presidente democraticamente eleito Manuel Zelaya, substituindo-o por um regime militar assassino y corrupto.
Atacam-no porque tornou públicos documentos que revelavam que Estados Unidos lançaram em segredo ataques com mísseis, bombas y aviões não-tripulados contra o Iémen, matando dezenas de civis.
Atacam-no porque tornou públicas as conversações extraoficiais que Hillary Clinton manteve com Goldman Sachs, conversações pelas quais recebeu 657.000 dólares, uma soma tão elevada que só pode considerar-se um suborno, assim como as suas garantias privadas a Wall Street de que cumpriria suas ordens enquanto prometia ao público regulação bancária e reforma financeiras.
Só por revelar estas verdades, é acusável.
O sistema judicial norte-americano é ainda mais draconiano que o britânico. Pode utilizar Medidas Administrativas Especiais, leis antiterroristas e a Lei de Espionagem para impedir que Assange fale em público, seja posto em liberdade sob fiança ou veja as provas «secretas» utilizadas para condená-lo.
A CIA criou-se para levar a cabo assassinatos, golpes de Estado, torturas, sequestros, chantagens, difamações e espionagem ilegal. Apesar das limitações que marcam os seus estatutos, tem tido como objetivo cidadãos americanos. Estas atividades foram expostas em 1975 nas audiências do Comité Church no Senado e do Comité Pike na Câmara de Representantes.
Em colaboração com UC Global, a empresa espanhola de segurança da embaixada equatoriana, a CIA submeteu Julian a vigilância digital e por vídeo 24 horas do dia. Falou-se em sequestrá-lo e assassiná-lo enquanto estava na embaixada, o que incluía planos de um tiroteio na rua com participação da Polícia Metropolitana de Londres. Os Estados Unidos destinam um orçamento secreto de 52.000 milhões de dólares por ano para ocultar múltiplos projetos clandestinos levados a cabo pela Agência de Segurança Nacional, a CIA e outras agências de inteligência, normalmente à margem do escrutínio do Congresso. Todas estas atividades clandestinas, especialmente após os atentados de 11-S, hão-se ampliado massivamente.
O senador Frank Church, após examinar os documentos da CIA, amplamente retocados, entregues ao seu comité, definiu a atividade encoberta de la CIA como «um disfarce semântico para o assassinato, a coerção, a chantagem, o suborno, a difusão de mentiras».
A CIA e as agências de inteligência, juntamente com o exército, os quais todos operam sem supervisão efetiva do Congresso, são os motores que impulsionam a extradição de Assange. Ao expor os seus crimes e mentiras, Julian infligiu-lhes uma ferida grave. Exigem vingança. O controlo que estas forças pretendem exercer no estrangeiro é o controlo que pretendem exercer em casa.
Pode suceder que Julian Assange seja de repente encarcerado para a vida nos EUA por exercer o jornalismo, mas ele não será o único.
[*] Chris Hedges é um jornalista norte-americano vencedor do Prémio Pulitzer. Foi durante 15 anos correspondente no estrangeiro para o The New York Times, exercendo a chefia do escritório do Próximo Oriente e dos Balcãs. Ao longo dos últimos anos estabeleceu una relação pessoal com Assange e converteu-se num dos seus mais fortes defensores: “O que está em jogo não é só a liberdade de Julian mas a liberdade de expressão e de imprensa”.
Fontes: <https://scheerpost.com/2023/06/18/chris-hedges-the-imminent-extradition-of-julian-assange-and-the-death-of-journalism/>; Rebelión: <https://rebelion.org/la-inminente-extradicion-de-julian-assange-y-la-muerte-del-periodismo/>
(1) Mesmo a pena de morte seria concebível embora não possa ser legalmente adotada devido às restrições do tratado anglo-americano de extradição, cf. Nils Melzer, “The Trial of Julian Assange” (N. da T.)